"Se não é pela arte, pra que a alma pesando o corpo?" - Caio Soh

sábado, 29 de janeiro de 2011

Areia Branca - Parte 02/02

Caminhei mais um pouco pela areia, aqueles pés me seguindo. As pessoas na areias não me enxergavam, pareciam todas em um transe. Eu andava por entre seus corpos morenos apáticos, era como se o tempo fosse outro para mim.

Por mais livre que meu corpo parecesse, minha mente estava aprisionada, meus pensamentos foram eternamente amaldiçoados a repassar aquele momento, como num looping do tempo que se repete infinitamente.

Eu pensava na praia, nas pessoas, mas não pensava realmente nisso, aquelas imagens ficavam nesse looping maldito em minha mente. Não pensava realmente em nada. Às vezes tentava lembrar do que queria ser quando crescesse. Era difícil.

Talvez eu quisesse ser pássaro, essa seria uma boa idéia, era uma boa idéia de liberdade. Ou quem sabe talvez, quisesse ser um daqueles ricos das praias da Cidade do Cabo. Talvez não. Eu gostava mais da sensação do proibido. Talvez quisesse ser como meu pai. Não. Eu nunca conheci o meu pai.

Como vê, já não lembrava com muita clareza da minha infância. Parecia outra vida. A vida de outra pessoa, que eu havia assistido, como numa tela de cinema, e tivesse passado, um filme bom, mas sem muitos espectadores.

- Moço!

Eu virava, e sempre aquela falsa sensação de que a pessoa me enxergava. Sim, ela falava comigo, mas não exatamente comigo. Aquela imagem que todos viam era uma máscara que eu havia criado para proteger meu eu verdadeiro. Proteger aquela pessoa dentro de mim machucada, dilacerada, amputada de mim mesmo.

Era assim, eu me olhava no espelho e não reconhecia a mim mesmo, claro, já estava be diferente de quando eu tinha saído d'África, mas não parecia o mesmo, mas às vezes, olhava bem lá no fundo e pensava que podia ver, aquela criança que um dia eu havia sido, mas eu sabia que eu a havia perdido a muito tempo atrás, nas areias brancas da Cidade do Cabo.

Muitas coisas de mim ficaram lá na Cidade do Cabo. Minha infância e minha inocência principalmente. Na Cidade do Cabo eu me tornei adulto quando ainda tinha corpo de criança, e perdi minha alma justo no momento em que eu mais precisaria dela. Outras coisas ficaram lá também. Lembranças dessa vida que eu tive e que teima em se mostrar como a vida de outra pessoa.

Depois de muito tempo passado daquele dia, daquele momento, eu finalmente me deparei com a verdade límpida que não foi escrita, e que se mostrava para mim nessas areias: eu morri naquele dia.

Talvez isso aqui seja só uma ilusão. Talvez esse passarinho voando na minha janela seja uma ilusão, um sopro de vento. Mas eu não estou mais aqui para saber.

Aqueles pés que encontrei na areia são meus, e eles caminham novamente pela areia branca da Cidade do Cabo, mas é um lugar que eu não reconheço. Vazio.

Espero que Deus venha me encontrar aqui. Eu sei que em alguma hora ele tem que vir. E então poderei dizer a ele: "Já não era sem tempo, Senhor".

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Areia Branca - Parte 01/02


Caminhei pela areia quente de cabeça baixa até me deparar novamente com aqueles pés cansados e enrugados que um dia fizeram parte da minha história.

Era tão estranho. Eu sabia que eles não estavam realmente ali, porque todas as outras pessoas naquela praia desviavam o olhar cada vez que viam os pés, assim como todas as memórias daquele tempo, ao contrário, teimavam em permanecer quanto mais eu olhasse para eles. É estranho como nos tornamos invisíveis ao mundo depois de passar por aquele tipo de experiências.

Aqueles pés estiveram presentes em muitos momentos da minha vida. Em certo ponto nós ficamos intangíveis e nos tornamos apenas pegadas deixadas na areia, que se vão com as águas.

Estivemos juntos na África. Na mãe África. Toda aquela crença de que um dia sairíamos daquela miséria, daquela fome, se tornaram reais, mas com um custo muito alto. Um custo tão alto que preferia não ter tido que pagar por ele. A liberdade do meu corpo não valeu a perda da minha alma. A minha alma foi há muito tempo enterrada, nas areias d'África.

Aquelas areias da praia que entravam por entre os meus dedos fazendo uma cosquinha de leve, me lembravam da minha infância, lá nas areias caras e brancas da Cidade do Cabo. Os ricos corpos bracos e louros que quase se misturavam com a areia e desfilavam pelas areias jamais saberiam que à noite as areias se entregavam aos corpos negros como uma mulher em sua noite de núpcias.

Eu e meus amigos pisávamos a areia calmamente, com medo de sermos ouvidos das casas gigantescas (pelo menos aos nossos olhos). Aquela primeira pisada na areia era tão prazerosa. Aquela sensação das areias entrando por entre os dedos sempre me pareceu algo proibido. Algo que não me pertencia, e ao qual eu também não pertencia.

Hoje, já nas areias queimadas das praias brasileiras podia sentir aquela mesma sensação, e agora, já sem aquela intrínseca imaginação infantil podia constatar que pisar nas areias e senti-las entrando por entre meus dedos era a única forma que eu tinha de me sentir livre de novo.

Cariocas

Poesia escrita para a matéria Teoria da Percepção do curso de cinema da UFF. O título que deveríamos usar para o trabalho era: "A Cidade sou eu". Funciona melhor se lida ao mesmo tempo em que se escuta Cariocas da Adriana Calcanhoto

Fecham-se em suas casas os cariocas
Fogem e escondem-se de si mesmos.
Atrás de muros, grades e câmeras.
Vigiam atentamente os cariocas,
cada rua esquina ou beco.
É sensato que nos tranquemos enquanto a violência anda solta por aí?
Temos, ao que parece, o dever de nos proteger,
e a violência, o direito de existir impune.
Esquecem-se de suas praias os cariocas.
Olham atentamente atráves das grades as ondas libertas do mar.
Ah, como eu queria ser mar...
Mas isso não pode carioca.
Seu destino é ser prisão.

Fica na cabeça então a dúvida:
O que é ser carioca?
Ou melhor, o que é ser cidadão?